SNIPE BRA 2019

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Foi o fim de um grande guerreiro: O barco Ruga!

Esta é uma daquelas histórias que vale a pena registrar. Foi o fim de um grande guerreiro: O barco Ruga! Além de uma surpresa incrível da Classe Snipe.

Estávamos em Porto Alegre para o Campeonato Brasileiro de Snipe. O campeonato tinha 59 barcos inscritos. Da represa de Guarapiranga estávamos em 3 tripulações e somando com o pessoal da Ilhabela e Santos estávamos em aproximadamente 12 barcos.

Essas regatas acontecem em todo mês de janeiro e os melhores competidores ganham uma vaga para o Mundial de Snipe. O resultado disso é que os melhores velejadores do Brasil participam e disputam as primeiras colocações.

O campeonato é aberto e nós amadores podemos participar também. E é uma verdadeira honra largar ao lado e grandes campeões da vela.

Passamos a semana toda no Clube Jangadeiros disputando regatas no rio Guaíba. A velejada no Guaíba é famosa. O vento é muito forte e o rio é raso, o que torna perigosa a velejada já que o mastro dos barcos tem mais de seis metros de altura e se o barco virar e emborcar pode danificar o mastro.

O Daniel, André, Enrico, Frê, Ziege e eu, tripulações da represa de São Paulo, que temos menos experiencia com ondas e vento forte o tempo todo, estávamos ilesos até aquele momento. Nenhum de nós havia capotado o barco ou se machucado. Até aquele momento.

Chegamos ao clube cedo e a previsão daquela sexta-feira era de três regatas com mais de 20 nós de vento. Cada um de nós montava seu barco em silêncio, checando regulagens e verificando possíveis danos das regatas de vento forte dos dias anteriores.
O Ruga estava firme. Eu o havia preparado para o Guaíba. Uma breve reforma que fizera em São Paulo tinha deixado o Ruga feito um tanque de guerra.

O tiro de atenção soou no pátio do Jangadeiros e fomos para a água.
A raia estava longe do clube. Com o vento leste daquela sexta-feira, a raia foi montada na Pedra Redonda. Na velejada para chegar até a raia já sentimos que o vento estava bem forte.

Ouvimos o tiro de 5 minutos para o procedimento de largada. Verificamos o front-puller, o neutro do mastro, o rake, as cruzetas fechadas para aguentar aquele vento todo, estava tudo certo. Faltava um minuto e já nos aproximávamos da linha de largada. Provavelmente escolhemos o lado certo pois estávamos ao lado dos melhores velejadores, e o problema disso é que os caras tem mais destreza no controle do barco naquele ventão. Logo formou-se um paredão de barcos sujando nosso vento bem na hora da largada.

Largamos super mal. Mas com aquela condição de vento e ondas picadas as tripulações do meio da flotilha cometem muitos erros e logo havíamos recuperado nossa largada ruim e estávamos no bolo do meio. Nessa regata tínhamos que fazer dos triângulos, um popa e a chegada num través curto.

Velejamos bem no través. O barco voava naquelas ondas. Ultrapassamos mais de 5 barcos trimando a buja sem o pau antes de entrar no último popa do Ruga.

Estávamos no nosso segundo triângulo e era nossa melhor regata até aquele momento. Vimos alguns barcos virados e os tripulantes tentando desemborcar o barco. Meu grande rival daquela semana, o Mario Eugêneo perdera o leme. As ferragens desencaixaram e estavam a deriva. Foi a única chance que tivemos de ultrapassá-los pois eles velejaram muito a semana toda. Passamos perto deles no contravento e gritamos: “vocês estão bem, precisam de ajuda?”. O Mario fez um sinal e entendemos que  situação estava sob controle. Ziege, meu proeiro, e eu continuamos rumo a boia de barla.

Montamos a boia no meio da flotilha, o que para nós é um grande feito dado o elevado nível técnico das tripulações. Era a nossa última perna de popa antes da chegada em través curto. O vento já havia ultrapassado os 20 nós mas a adrenalina era tanta que já nem sentíamos o peso do barco e dos cabos arranhando as mãos. Conseguimos colocar o pau da buja e o barco voava naquelas ondas do Guaíba. Por precaução nem sequer soltamos o rake para proteger o mastro.

Optamos por diminuir os riscos de virar o barco naquele vendaval e resolvemos apenas arribar na boia deixando o jibe para depois. Mas estávamos nos distanciando da flotilha e precisávamos do jibe para manter a posição.

Não sei dizer se o vento rondou na hora do jibe ou se foi uma onda no costado do barco, mas o fato é que a mestra não veio. Perdemos velocidade e eu insisti no jibe sem esperar a que o barco ganhasse seguimento novamente. Quando a vela mestra finalmente cambou, o tranco adernou demais e o barco virou.

Lembro de ter pulado na bolina antes do mastro afundar. O Ziege também subiu na bolina para desvirar o barco. Em pé na bolina eu olhava para a raia e ainda dava para manter uma boa posição naquela regata. Mas quando o mastro ergueu-se da água, o barco capotou para o outro lado e o mastro afundou de vez no Guaíba.

Com o casco a barlavento, as ondas e o vento enterravam mais e mais o mastro no fundo do Guaíba. A proa balançava muito a ponto que não poder me aproximar sem machucar as mãos. Numa descida de onda consegui segurar o estai de proa. Eu tentava puxar o barco pela prôa mas era simplesmente impossível. Com aquela pressão toda no casco o barco não se mexia nem um centímetro.

Ficamos muito tempo na água tentando puxar a proa até que uma onda mais alta desencaixou o pé de mastro e o mastro atravessou a fibra e arrebentou a enora. Havia um buraco enorme logo abaixo da enora por onde a água começou a entrar. O meu velho Ruga estava afundando.

Eu estava muito cansado e imaginei que o Ziege estaria muito mais. Um bote de apoio recém chegara e pedi para o Ziege subir no bote e descansar. Estava preocupado com o nível de exaustão dele. Consegui embarcar no bote a bolina e o leme. Mas a cada onda o mastro, ainda enroscado nos brandais, quebrava mais fibra e a água entrava cada vez mais rápido no casco do barco.

Finalmente ouvimos um rachar de fibras e o barco emborcou de vez e começou a afundar. Nesse momento chegou mais um bote de apoio. O Peter, um velejador local mergulhou e começou a me ajudar. Ele viu o meu cansaço e me disse para subir no bote. E eu subi mas não pude ficar mais do que um minuto olhando para o Ruga emborcado, todo enroscado com brandais, velas, cabos e afundando pouco a pouco. Mergulhei de novo ao lado do Peter e juntos decidimos cortar os brandais e sacrificar o mastro e as velas.

Talvez tenha sido uma decisão precipitada ou talvez o cansaço de mais de três horas na água prejudicaram o meu discernimento. O barco continuava a afundar lentamente. Chegou a passar pela minha cabeça que o Ruga, mesmo velho, tinha seu sistema de flutuação ainda funcionando, caso contrário ele teria afundado muito mais rápido. Mas eu sentia que ele afundava alguns centímetros a cada instante e não aguentei mais. Cortamos os brandais, o estai de proa, amarramos um cabo no que restou da enora e voltamos para o clube.

Haviam mais de vinte amigos esperando na rampa. Quando chegamos rebocados o Henrique me disse: “Deixa os caras cuidarem do Ruga, você tem que vir na assembleia da Classe. Estão todos te esperando.”

Durante a maior parte da reunião eu não consegui me concentrar. Pensava no Ruga e em alguma forma de continuar nas regatas do dia seguinte. O Rafa Gagliotti tocava a reunião e o Henrique cuidava da ata. Um fio de sangue saia do meu pé e fazia uma poça vermelha no chão e meu pé começou a inchar até parecer uma batata. As regatas do dia seguinte ficavam cada vez mais distantes.

Durante a assembleia, após uma discussão acerca das regras da Classe, decidiu-se manter o Campeonato Brasileiro de 2019 na Represa de Guarapiranga. Foi bom pois deu uma sensação de missão cumprida. Uma missão que começara à um ano atrás quando pedimos o campeonato no Brasileiro da Ilhabela quando estávamos em plena reforma do clube coordenada pelo Beto, deixando-o mais atrativo e apto para receber campeonatos daquele porte.

Durante a reunião a notícia do Ruga se espalhou pelas redes sociais e as mensagens de apoio começaram a chegar. O Rafa e Henrique me convidaram para jantar naquela noite e para me motivar eles me deram de presente um jogo de velas. Entre piadas e outras histórias de naufrágio que eles me contaram eu acabei indo dormir mais calmo.

Durante a noite mal dormida as mensagens de apoio não paravam de chegar. Velejadores e amigos de São Paulo que acompanhavam o campeonato escreviam “Força Alonso” nos grupos sociais.

Quando acordei no dia seguinte, último dia de regatas do campeonato, não fossem as mensagens de apoio eu não teria ido ao clube pois meu pé mal podia encostar no chão de tanta dor.

Cheguei ao clube mancando e tinha um mastro e um pau da buja encostado no barco. Haviam deixado lá de presente para o Ruga. Eu não acreditava naquilo!

Foi então que o nosso querido Lemão me convidou para tomar um café na lanchonete do clube e ele me disse: “Cara, fizemos uma vaquinha com a turma da Classe e resolvemos te dar um barco de presente, você não vai parar de velejar sequer um final de semana!”.

Eu simplesmente não podia acreditar no que estava ouvindo. Vocês conseguem imaginar como é incrível você ouvir de alguém “estamos te dando um barco de presente”?

É uma mistura de contentamento e acanhamento. Creio que jamais poderei retribuir à altura tamanha consideração. Durante a viagem de retorno a São Paulo eu fiquei pensando em como retribuir e cheguei a uma conclusão e acho que é o mínimo que poderia fazer pela Classe.

Eu resolvi o seguinte: Se a Classe me deu um barco de presente então eu vou dar um barco de presente para a Classe. Resolvi que o Ruga de hoje em diante será o barco da Classe Snipe de São Paulo. O Ruga, depois de reformado, será o barco escola e estará disponível para aulas, regatas e velejadas para quem queira conhecer a classe.

Acho que depois de tudo o que aconteceu, isso é o mínimo que poderia fazer, e ainda vou ficar devendo. Do fundo do coração, obrigado, obrigado e obrigado a todos vocês.

Alonso López
Coordenador Classe Snipe em São Paulo.